Sentados em volta de uma grande mesa oval, num salão ornamentado em estilo clássico, líderes de diversos países do mundo esperavam o início da reunião. A luz fraca deixava uma penumbra no ar. A espera era silenciosa, ouvindo-se apenas os ininteligíveis cochichos entre um ou outro governante e seus assessores de mais alto gabarito.
A convocação, enviada cinco dias antes, fora escrita em tom grave e urgente. Porém, o assunto a ser tratado ainda era desconhecido. Ansiedade e tensão carregavam o ambiente quando a porta se abriu e entrou no recinto o Chefe de Estado mais poderoso da Terra. Qualquer pessoa comum jamais imaginaria que aquele era o grande líder mundial. Tantos países ditos economicamente fortes, outros considerados potências militares… Como pode, justo o governante daquele país ser o mais poderoso entre todos os poderosos?
Ele entrou, solenemente sentou-se à cabeceira da mesa e logo começou a expor o motivo da reunião:
“Senhores, hoje não é dia de cerimônias. Vamos direto ao assunto, pois creio ser de importância global. Pelo menos para nós, líderes do mundo, é de indubitável interesse. Acredito que todos temos conhecimento suficiente das doutrinas do cristianismo. Há décadas nossas nações, por meio de líderes que nos antecederam, têm se esforçado para impedir que tal cosmovisão se fortaleça. Temos alcançado relativo sucesso nessa causa, mesmo com estratégias tão distintas. No entanto, precisamos reconhecer que nossas iniciativas não têm sido totalmente eficazes. Os países que optaram pela oposição declarada e perseguição violenta ainda não conseguiram acabar com a pregação cristã em seus territórios, contrariando o que se imaginava. Os que escolheram promover a relativização da cultura e a desconstrução de padrões absolutos para o pensamento têm conseguido certo sucesso em fazer com que seja rotulado de cristianismo um estilo de vida bastante distante das doutrinas do tal Jesus e seus apóstolos. Porém, em todo canto, ainda são encontrados indivíduos e grupos fiéis aos ensinamentos daquele judeu.
Não obstante todos esses fatos, minha preocupação nos últimos dias tem um motivo específico. A verdade é que tenho me incomodado bastante com a esperança convicta dos cristãos sobre a volta desse Jesus, que eles acreditam estar vivo, sabe-se lá onde. E os senhores também deveriam estar preocupados. Não que eu creia na Bíblia ou nas pregações desses cristãos. Tenho dado provas de que não acredito em nada disso. Confesso, porém, que venho pensando em como seria prejudicial para nós se tudo fosse verdade. A doutrina deles diz que, quando esse Cristo voltar, se ele voltar, nenhum outro governo subsistirá. Os senhores entendem o que estou dizendo? Isso afetaria todos nós: todos perderíamos nossos tronos, nossos reinos, nosso poder.
Eu sei que nunca tinha demonstrado preocupação com isso. Então, os senhores devem estar se perguntando: por que o assunto veio à baila tão repentinamente? Ocorre que, há poucos dias, um rapaz cristão começou a trabalhar na antessala do meu gabinete. Ele acredita piamente que também sou cristão, e eu, obviamente, prefiro que ele assim pense - como a grande maioria da população do meu país. Esse moço eventualmente tem audiências comigo. Nos intervalos, sempre fala sobre quão esperançoso está quanto à volta de Cristo. Ele demonstra tanta convicção, tanto entusiasmo, que aquilo me incomodou. Cheguei ao ponto de me sentir realmente perturbado e, então, pedi a um dos meus assessores diretos, de alta confiança, que pesquisasse na Bíblia os indícios do retorno de Jesus. O resultado da pesquisa me chocou: as guerras, a fome, os terremotos, as tentativas de enganar os cristãos e as tribulações por eles sofridas… há predições até sobre a ausência de amor. Conseguimos tanto sucesso em fazer o mundo rotular de amor os sentimentos mais incoerentes e angustiantes, e agora vemos isso se virar contra nós mesmos, com o risco de perdermos todo o nosso poder.
Enfim, senhores, eis a minha preocupação e o motivo de tê-los chamado para esta reunião. Precisamos de um novo plano, pensar em como barrar uma eventual ameaça desse Cristo contra nós. Ele não pode tomar um lugar que é nosso!”
Neste ponto, todos estavam em choque. O burburinho era intenso, expressões nervosas estavam estampadas nas faces e uma agitação desordenada tomou o espaço. Os líderes trocavam ideias entre si e com os seus assessores. As discussões se tornavam exaltadas. A confusão se estendeu por cerca de meia hora e, conforme o tempo passava, a ausência de uma proposta viável transformava a tensão em desespero.
Até que, de repente, um certo governante começou a bater na mesa e a gritar pedindo para ser ouvido:
“Senhores! Senhores! Ouçam-me! Meu assessor aqui se recordou de algo registrado na Bíblia que pode nos indicar uma estratégia. O tal Jesus certa vez advertiu os seus discípulos dizendo que o fim somente viria depois que a sua doutrina tivesse sido pregada a todas as etnias. Se ele efetivamente estabeleceu todas as etnias como a meta para a pregação a ser realizada, então ainda existe um grande trabalho a ser feito por seus seguidores. Na verdade, um trabalho enorme, pois temos dados confiáveis sobre o grande número de povos que ainda não foram alcançados pela pregação dos cristãos. Meu país mesmo abriga muitas etnias, várias das quais nunca ouviram falar do Cristo, posso assegurar-lhes.”
O líder dos líderes arregalou os olhos com certa satisfação:
“Sim… muito bem! É uma boa notícia. De fato, essa é uma tarefa que os cristãos têm realizado com bastante dificuldade. Há muito temos observado que, apesar de terem condições de empreendê-la, os avanços verificados são lentos. Tanto que, entre as muitas preocupações que temos com os cristãos, essa não é das maiores. Na verdade, nunca foi um assunto relevante em nossas reuniões. No entanto, não podemos apenas contar com a apatia deles nessa frente de ação, pois, se em algum momento se despertarem, pode ser difícil pará-los. O que podemos fazer, senhores?”
O ditador de um país conhecido por torturar e até executar cristãos em seu território levantou a mão:
“Meus companheiros, creio que posso dizer com propriedade que nosso foco deve ser desestimular o trabalho que os cristãos chamam de ‘missionário’. Digo isso porque é evidente que os cristãos que entram no meu país para pregar a doutrina do tal Jesus encaram isso como uma verdadeira missão. Eles são de uma tenacidade militar. Nossa situação só não é mais preocupante porque no último século não tem sido expressivo o número de cristãos dispostos a assumir esse trabalho. Sinceramente, minha opinião é de que tentar impedir os cristãos de entrarem em certas regiões é perda de tempo. Precisamos envidar esforços para que os crentes não tenham disposição de sair para pregar.”
“Acho plausível a colocação!” - disse o anfitrião. “Alguma ideia sobre como conseguir isso, senhores?”
Após alguns instantes de conversas sussurradas, uma voz se levantou:
“Sugiro massificar a ideia do ‘conforto’ como ideal de vida. Isso geralmente funciona bem com os cristãos do ocidente. Eles são trabalhadores, se esforçam para ser bem sucedidos e a maioria alcança condições de gozar certas comodidades. Então, tem sido fácil incutir neles a ideia de que uma vida confortável é algo que merecem. São impressionantes os resultados alcançados no meu país. Os cristãos não apenas usufruem do conforto individualmente, mas também têm transformado seus templos e locais de reunião em lugares extremamente atrativos, onde podem se deleitar coletivamente. Com o tempo, isso se fixa como um valor em suas mentes e, então, é perceptível a indisposição dos cristãos em aceitar a possibilidade de suportar qualquer desconforto, mesmo em nome da fé. Eles se sentem seguros pelo fato de que estão cultuando em seus templos, repetindo uma rotina de reuniões deveras prazerosas, e, no final, não só se acostumam, mas ainda se apegam a isso. Graças a… a… a alguma força superior, uma vez incutida a ideia, ela se torna resistente e passa de geração para geração. Afinal, se alguém sequer cogita a possibilidade de enfrentar o desconforto pessoalmente, imaginem o que planeja para os seus filhos!”
O movimento das cabeças e as falas simultâneas no salão mostravam que a ideia tinha sido bem recebida. Um senhor de barba branca e uniforme militar levantou a mão e aguardou o silêncio:
“Obrigado, senhores! Acredito que o meu colega concluiu abordando o ponto central para um plano que alcance o objetivo de frear a pregação dos cristãos fora de seus domicílios. De fato, não temos que nos preocupar com o que os adultos pensam sobre si mesmos, mas, sim, com o que planejam para as futuras gerações. Afinal, impedir que criem filhos com coragem e desejo de sair de suas fronteiras para falar do tal Jesus nos dá uma perspectiva de sucesso contra os cristãos no longo prazo. Devemos, então, intensificar algumas táticas que já adotamos há algum tempo. Precisamos reforçar a ideia de que existem algumas profissões mais desejáveis que outras porque garantem maior remuneração, atrelando a isso o conceito de ‘sucesso’. Consequentemente, os crentes continuarão desmotivados a ver a atividade missionária como uma possibilidade para o futuro dos seus filhos. Outra tática que tem apresentado resultados expressivos é a propaganda de que devemos deixar ao arbítrio dos filhos a decisão sobre o seu futuro, de que não devemos influenciá-los. Pensando que são livres, os filhos dos cristãos têm crescido aprisionados pela pressão de alcançarem reconhecimento em um rol de uma dúzia de profissões, de medirem seu sucesso por meio de ganhos financeiros, de se afirmarem na sociedade como pessoas independentes…”
“Isso! Isso!” interrompeu um líder oriental. “Eu pensava exatamente nesse último ponto. Temos que aproveitar a vantagem que já alcançamos por termos incutido nas pessoas a convicção de que o objetivo de seus trabalhos é garantir-lhes a independência. Lembrem-se de que a atividade missionária se desenvolve baseada na dependência total. Porém, a maioria das culturas atualmente tem convencido seus cidadãos a desejarem ser independentes. Os cristãos também já abraçaram essa ideia há muito tempo. Eu creio que tal pensamento tem contribuído para que muitos deles recusem o só pensar na possibilidade de ir a lugares distantes para pregar sobre a sua fé, se para isso tiverem que depender de outros para o seu sustento. Temos que massificar mais e mais essa ideia em nossas culturas. Para mim, essa é a chave do nosso sucesso.”
As preocupações iniciais da reunião já tinham se dissipado e os líderes mundiais agora conversavam empolgadamente sobre como concretizar os seus planos. O grande líder bateu palmas por alguns segundos até conseguir silêncio no salão:
“Senhores, saio desta reunião aliviado. Deveras, estou convencido de que não precisamos temer que o tal Cristo e o seu reino possam nos ameaçar. Pelo menos, não nas próximas décadas. Não que eu creia nessas tolices, os senhores me conhecem. Digo isso apenas em tese… apenas em tese. Porém, meus companheiros, o melhor estrategista é aquele que antecipa todas as possibilidades. Se existe algo de verdade nessa Bíblia dos cristãos, pelo menos sabemos que nada nos pegará desprevenidos. Agora, precisamos planejar como colocar em prática tudo o que discutimos hoje. Deixo já marcada uma reunião para exatamente daqui a dois meses, para elaborarmos um plano de ação global, com táticas distintas para cada região do mundo. Por favor, tragam ideias, projetos, muitas iniciativas de comunicação, ações políticas, diretrizes para as artes e para os sistemas educacionais… mas isso é para a próxima reunião. Por ora, agradeço a presença de todos e desejo um bom retorno aos seus países.”
***
Texto originalmente escrito em 23/09/2023. Revisto em 26/12/2025.
Nenhum comentário:
Postar um comentário